quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Isso não é sobre fé, é sobre violência


* Por Mariah Aleixo e Rafaela Rodrigues
Impossível não ter reação – qualquer que seja – após assistir o vídeo “como ser submissa a uma pessoa omissa?” do II Congresso de Mulheres Diante do Trono. Aliás, é impossível não deixar de se indignar ao assistir qualquer vídeo deste Congresso. As atividades desse grupo de mulheres são transmitidas pela “Rede Super de Televisão”, um canal ligado às igrejas evangélicas.
É importante deixar claro que a discussão que se propõe aqui nada tem a ver com religião, com a defesa de uma igreja A ou B, mas com política. Se é certo que “o pessoal é político”, acreditamos que os argumentos que defendem a submissão da mulher à Deus e ao marido, que reiteradamente são pregados por esse grupo, não tem relação direta com a fé, mas com a desigualdade entre mulheres e homens. São argumentos frequentemente suscitados para justificar uma conduta violenta do marido, pai, padrasto para com as mulheres.
No vídeo citado acima, as pastoras conversam sobre o papel da mulher na família, comentando que nos dias atuais as meninas estão sendo criadas mais para a carreira que para o lar. Dizem as pastoras que é preciso educar as mulheres para o casamento e, principalmente, para a submissão, não somente a Deus, mas ao marido. O marido, segundo elas, é o chefe da casa e é preciso honrá-lo e, ao que parece, honrá-lo significa parar tudo o que se está fazendo quando ele chega em casa para fazer somente as vontades dele. A educação dos filhos também deverá ser diferenciada com o menino aprendendo desde cedo que o seu papel é (supostamente) central (e estanque) na família.
Além disso, afirmam também: “A menina não sabe cozinhar, não sabe pregar um botão, não sabe passar, nunca arrumou uma cozinha”, “ela não está sendo preparada para o lar”, “a submissão é um princípio que abrange algo muito mais profundo e maravilhoso… sonhem em ser esposas… sonhem em ser mães…e que possamos preparar nossas meninas para o casamento.”
Em outro vídeo do culto de Mulheres Diante do Trono, chamado “A mulher deve respeitar o seu marido” pregado pela Pra. Ana Paula Valadão, a mesma afirma que o casamento é uma decisão definitiva e que a felicidade do casamento e da família é somente responsabilidade e (ou na falta de) culpa da mulher: “Você (mulher) não precisa amar seu marido, você precisa somente respeitá-lo”(sic).Por diversas vezes a Pastora Ana Paula dá exemplos extremos e afirma que a mulher não deverá desistir do casamento e deverá “pagar o mal, com o bem”, “Não caminhe pelos seus sentimentos, caminhe pela sua decisão”(sic).
A indignação é enorme quando se ouve isso de mulheres, pois são muitos anos de resistência do movimento feminista lutando contra a desigualdade e a submissão. Temos inúmeras vitórias e avanços. O papel da mulher na sociedade do século XXI é central, com máxima participação no mercado de trabalho, aumento significativo das líderes mundiais, maior representação legislativa, direito ao voto, entre outros tantos exemplos. Porém ainda vivemos sob os pilares do machismo, onde nosso modo de ser, de pensar e nossa sexualidade são moldados segundo padrões impostos, não nos dando o direito de decidir nosso próprio destino! Ter filhos, casar, ser dona de casa, não tem problema algum, contanto que seja uma escolha, não uma imposição. Se essa for a única possibilidade colocada às mulheres, conforme pregam as Mulheres Diante do Trono, aí está o grande problema.
Outro grande problema – aliás, o problema central – é que o discurso da submissão pregado por essas mulheres guarda íntima relação como o problema da violência contra as mulheres. Nossa vivência no movimento feminista tem mostrado que geralmente os agressores das mulheres dizem que tem razão em fazer o que fizeram/fazem porque elas não estão/estavam cumprindo o seu papel dentro da família, que é o de ser submissa ao marido, fazendo sempre as vontades dele, ou seja, colocando-se em último lugar na escala de prioridades. Não é de hoje que pesquisas como a que resultou no famoso livro “Cenas e Queixas – um estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática feminista” e o recente artigo “As políticas de combate à violência contra a mulher no Brasil e a ‘responsabilização’ dos ‘homens autores de violência’” publicado na revista Sexualidad, Salud y Sociedad mostram que a violência sofrida pelas mulheres é justificada – pelas que sofrem com o problema e por seus algozes – como uma punição aceitável em face do não cumprimento do “papel de mulher.”
A doutrina do dever de submissão a Deus não pode ser transformada, por analogia, no (suposto) dever de submissão das mulheres aos homens, conforme este grupo prega. Isso é perigoso pois propaga os argumentos justificadores de todo o tipo de violação da dignidade das mulheres, e é por isso que afirmamos isso não é sobre fé, é sobre violência!
Perguntamo-nos se por acaso essas mulheres não estão sendo beneficiadas pela luta feminista, ao serem reconhecidas enquanto pastoras e debaterem sobre a palavra de Deus num congresso tão grande, que reúne cerca de 6 mil mulheres. Não seria uma incoerência pregar a submissão ao marido (e tantas outras ideias retrógradas que vem a reboque) nesse contexto de protagonismo dentro da igreja? Certamente, há uma enorme contradição nesse discurso, pois muito dos avanços que elas mesmas desfrutam advém do duro embate às ideias anacrônicas que elas pregam.
Importante lembrar, por fim, que faz pouco mais de quatro séculos que as mulheres conquistaram, em nossa sociedade, o direito de falar em público, de emitir suas opiniões, de se alfabetizar… A bíblia, no entanto, tem passagens escritas a mais de dez mil anos, que foram traduzidas muitas vezes e para as mais diversas línguas. Há de se fazer a devida adequação da leitura bíblica à realidade atual. Estamos certas de que isso é possível, uma vez que se o cristianismo sobrevive até hoje é porque leu as escrituras sempre à luz do tempo presente. Nossa sociedade corre para frente, direitos já conquistados pelas mulheres não podem sofrer golpes como esses. A emancipação das mulheres é necessária e justa e envolve o direito de decidir, de ter autonomia e o direito de não sofrer violência, até porque somos gente!
O debate está colocado. Esse assunto, ao que parece, está na ordem do dia e merece ser cada vez mais amadurecido. De todo modo, esperamos que possamos estar juntas – mulheres, negras, lésbicas, evangélicas, indígenas, ubandistas e católicas – diante de toda a sociedade, lutando por igualdade.
Mariah Aleixo é Advogada e Mestranda em Direitos Humanos pela UFPA
Rafaela Rodrigues é Mestranda em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela Puc-Rio

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