quarta-feira, 16 de abril de 2014

Sobre as palavras que nunca saíram

Só hoje tive coragem de ler alguns textos sobre a cultura do estupro e fiquei com um nó na garganta, chorando silenciosamente, com muita dor no coração, tremendo e lembrando um dos motivos que me levam a permanecer na luta feminista...

Quando eu tinha uns 5 anos ou 6, não lembro bem, morava em Marituba (município do Pará), com meus pais e meu irmão. Meu pai e minha mãe trabalhavam bastante e passavam a maior parte do dia fora de casa, mas nos deixavam aos cuidados de uma babá até que chegassem do trabalho.

Um dia, eu fui brincar na casa do meu amigo, que morava ao lado de casa e o irmão mais velho dele, que na época deveria ter uns 17 ou 18 anos, me chamou para um quarto, abaixou a minha calcinha, botou a mão na minha boca tentando impedir que eu gritasse (nem precisava, as palavras não saiam) e começou a penetrar em mim, dizia que ele estava só brincando comigo, que se eu contasse aos meus pais ele iria machuca-los e ficou por bastante tempo fazendo aquilo e eu só queria chorar, porque doía muito e nem estava entendendo o que estava acontecendo.

Lembro que quando cheguei em casa, minha babá foi me dá banho, e quando viu minha vagina, perguntou porque ela estava toda vermelha, assada, perguntou se eu havia lavado com sabão de manhã e eu disse que sim (mentindo). Então ela me ensinou que nunca deveria lavar com aquele tipo de sabão e que ia passar pomada em mim. Mesmo depois dela ter me dado banho, ainda me sentia suja e com medo.

Houveram dias em que a minha babá precisava ir embora mais cedo e me deixava na casa desse vizinho. E o mesmo se repetia.  Não entendo como ninguém naquela casa não percebia.

Passei tardes triste, lembro muito bem, sentia vontade de chorar, tinha uns momentos agressivos, vontade de fugir, de morrer, mas nunca sequer mencionei algo para os meus pais.

Um dia disse pra minha babá que não era mais amiga daquele menino e que preferia ficar na casa da coleguinha da frente, então, depois de eu ter insistido muito, um dia ela conversou com a mãe da garotinha e passou a me deixar lá. Mas não tinha um só dia em que eu não lembrasse daquilo. Sentia muita vontade de falar pro meu pai, principalmente nos dias em que ele deitava ao meu lado e perguntava como tinha sido o meu dia e eu tinha que sufocar as partes ruins e só falar sobre as boas. O medo de que algo ruim pudesse acontecer com meus pais ou comigo, me ajudava a sufocar qualquer palavra que denunciasse aquele homem.

Meu pai faleceu. Nos mudamos. E com isso, mesmo triste, a possibilidade de uma vida nova, em outro lugar, plantava uma sementinha nova de felicidade no meu coração.

Alguns anos após a morte do meu pai, minha mãe conversou comigo e com meu irmão falando sobre ter um novo namorado. E nós aceitamos. Vimos como foi difícil superar a perda do nosso pai. Eis que após alguns meses de namoro, o namorado da minha mãe passou a ter mais espaço dentro de casa, já podia dormir e fazer alguns passeios conosco.

Um dia, a noite, minha mãe foi tomar banho, enquanto eu estava no quarto dela assistindo TV, junto com o namorado dela, então, em algum momento que não lembro perfeitamente, ele meteu a mão dentro da minha calcinha e disse pra eu ficar calada e não dizer nada pra minha mãe. Eu sabia o que aquilo significava. O mesmo pesadelo, com endereço e rosto diferente.  O medo voltou. E permaneceu sufocando qualquer palavra de dor.

Um dia estava dormindo e senti alguém puxando a minha calcinha, então fingi que estava acordando e a pessoa saiu correndo pro outro cômodo da casa... esse era um outro namorado que minha mãe arranjou alguns anos depois.

E também teve uma vez em que eu estava no aniversário da minha tia, e o marido bêbado dela acariciou meus seios, tocou na minha vagina, mandou eu sentar no colo dele e ficou excitado.

Todos esses homens me silenciaram.

Eu podia ter falado alguma coisa, já que eu era um pouco maior e já tinha consciência de que aquilo era errado, mas eu me sentia nojenta, culpada e o medo de que as pessoas se machucassem ou brigassem por minha causa, me calou.

Desde então, minha relação com meu corpo não é boa. Lembro que um dia minha pediatra perguntou pra minha mãe porque eu não usava sutiã, que nas consultas eu sempre estava com umas blusas largas e uma blusinha colada por baixo ou top. Então minha mãe disse “(...) acho que ela tem vergonha dos seios, Dra”. E tinha mesmo. Mas, mais do que ter vergonha dos meus seios, eu não queria chamar atenção. Não queria ser uma mulher atraente. Talvez, o fato de ter sido estuprada somado ao de ter passado a maior parte da minha vida estudando o catolicismo e sendo orgânica dentro da igreja, tenha colaborado para essa relação com o meu corpo.

Eu era o tipo de pessoa que humilhava os garotos da minha escola, que batia em qualquer um que fizesse qualquer piada comigo. Lembro que nenhum namoro meu durava, porque em algum momento do namoro, eu tratava aqueles homens como seres descartáveis. Foi grande o susto das minhas amigas e família quando meu namoro durou mais de um ano.

Foi nesse namoro que comecei a refletir sobre a raiva que sentia (já estava na universidade). E consegui conversar mais, ser mais compreensiva e consegui ter minha primeira relação sexual, acho que isso ocorreu quando eu tinha uns 21 anos. E lembro que chorei, na primeira tentativa. Porque isso me remetia à lembranças ruins e aquele sentimento de nojo voltava.

Eu já militava no movimento estudantil desde os 18 e no movimento feminista desde os 19, mas foi demorado o processo para que eu percebesse que não havia nada de errado comigo, que eu não era a culpada, que os culpados eram outros. Aqueles homens que sentiram-se no direito de usufruir do meu corpo sem meu consentimento. Aqueles homens que me violentaram psicologicamente. Aqueles homens que se acharam donos do meu corpo. Eles sim, eram os culpados. Mas ainda assim, mesmo depois de tanto tempo militando, aquelas ordens sobre meu silêncio ainda ecoam e ainda são obedecidas. Porque há uma sociedade que também me quer calada.

Enquanto escrevo esse texto, outras meninas devem estar sendo estupradas, ou mulheres, e elas, de certo, ficarão caladas, chorando, ou com muita raiva, porque aqui fora há uma sociedade que não quer ouvi-las e que quando ouvem,  as culpam. Aqui fora há uma sociedade que ensina as mulheres a como não ser estupráveis e que, consequentemente, se formos, é porque não seguimos essas “regras”.

Pra você, que faz parte das pessoas que culpam a vítima, seja pela roupa, pelo corpo “sedutor”, pelo horário em que estava na rua, porque ela é uma “piriguete”, ou qualquer outro argumento para justificar, você também estava colocando a mão na minha boca e me ameaçando na hora em que eu estava sendo estuprada. Você também é um estuprador e está contribuindo para a perpetuação da cultura do estupro.

Estou escrevendo esse texto, como uma primeira tentativa de cura, porque guardar isso por tantos anos ainda dói e porque escrevendo a minha história, posso estar incentivando mais vítimas a contarem as suas e isso talvez, contribua para a sua cura.

Essa história ainda é aquela lágrima que nunca seca. A vergonha que demorou pra passar. E a raiva que machuca. Poderia ter postado ela no meu blog, mas preferi que fosse em um blog feminista, não só pelo maior número de pessoas que poderão ter acesso a ela, mas porque eu me sinto confortável pra escrever a minha história em um espaço onde serei acolhida pelas minhas companheiras de luta e porque é o feminismo que tem me ajudado nesse processo de libertação e que me motiva a ajudar mais pessoas a se libertarem das correntes patriarcais que as prendem.

É preciso combater e denunciar. E, por isso, continuarei em marcha, até que todas sejamos livres.