sexta-feira, 8 de abril de 2011

Realengo - Parte 2

Eu, como todo mundo, estou chocada com a tragédia no Rio, em que Wellington Menezes de Oliveira, de 23 anos, entrou numa escola municipal, matou dez meninas e dois meninos, e se suicidou após ser atingido por um policial. Já sabemos que essa diferença entre vítimas meninas e meninos não foi por acaso. Um aluno que chegou a conversar com o assassino relatou: “Tiros nos meninos era só pra assustar. Ele matava as meninas com tiros na cabeça. Nas meninas, ele atirava para matar. Nos meninos, os tiros eram só para machucar, nos braços ou nas pernas”. Outros relatos apontam que seus alvos eram garotas bonitas. Mais depoimentos afirmam que ele se referia às meninas como “seres impuros”. E a carta que ele deixou mostra um jovem muito perturbado e confuso, que se diz virgem e que não quer ser tocado por “impuros”. 
Eu quero chamar a tragédia pelo nome: foi um crime de ódio (hate crime, em inglês). Crime de ódio é quando alguém mata uma pessoa especificamente pelo seu gênero, cor, orientação sexual ou religião. Wellington não entrou na escola atirando a esmo. Ele não matou qualquer um. Ele matou meninas. Foi lá com esse objetivo. Foi premeditado.
A fórmula é explosiva: junta-se um acesso fácil às armas a um ódio imenso contra mulheres (isso tem nome: misoginia), que esses psicopatas desejam sexualmente mas odeiam ao mesmo tempo, porque elas os rejeitam. Não quer dizer que todo rapaz que não consegue as garotas que quer vai abrir fogo contra mulheres num lugar público. Mas os que já têm uma inclinação psicopática pra isso vão. E acontece com certa frequência. 
Isso me lembrou um caso que aconteceu em Pittsburgh, nos EUA, em agosto de 2009, e que não teve grande repercussão no Brasil. Um analista de sistemas de 48 anos chamado George Sodini foi a uma aula de aeróbica numa academia de ginástica, apagou as luzes, disparou 52 tiros, matou três mulheres, feriu outras nove e se suicidou. Ele não fazia sexo havia 19 anos e achava que as mulheres lhe deviam alguma coisa. Como sabemos? Porque ele escreveu isso no seu blog (tirado do ar, mas copiado antes por outras pessoas). Alguns de seus posts mostram bem o que a misoginia causa. Traduzo três:
5 de novembro de 2008
Planejava fazer isso [o massacre] no verão mas resolvi ficar mais um tempo pra ver o resultado das eleições. Essa em particular recebeu muita atenção e fiquei curioso. Não que eu dava a mínima pra quem ganhasse, já que meu plano já estava pronto. Boa sorte a Obama! Ele terá sucesso. A mídia liberal o ama. Amerika (sic) escolheu O Homem Negro. Ótimo! Por causa disso tive ideias fora dos planos de Obama para a economia e tal. Aqui vai: Todo homem negro deveria pegar uma jovem vadia branca pra transar. Seria um reverso dessa coisa de servitude. Há muito tempo, muitos donos de terra mais velhos tinham uma jovem negra para seus desejos. Já é tempo que a mesa vire. Sem contar que as vadias brancas gostam dos irmãos. LOL. Mais que elas gostam dos caras brancos! Todo pai sabe quando ele manda sua filha pra faculdade que ela começará a transar com um irmão de cor. Eu já vi. “Não a minha filhinha”, papai diz (certo!). Caras negros podem escolher as melhores vadias brancas. Faça as contas, há jovens brancas para que todos os irmãos possam ter uma durante cada 3 a 6 meses.
5 de junho de 2009
Eu estava lendo vários posts em fóruns diferentes e parece que muitas meninas adolescentes fazem sexo frequentemente. Uma de 16 faz três vezes por semana com o namorado dela. Então, ahn, depois de um mês disso, essa pequena vadia fez mais sexo que EU na minha VIDA, e eu tenho 48 anos. Mais um motivo. Obrigado por nada, vadias! Adeus. 
23 de julho de 2009
Acabei de olhar pela minha janela e vi uma linda garota em idade de faculdade sair da casa do Bob Fox, do outro lado da rua. Suponho que ele transou bem hoje. Garotas de faculdade são vagabundas. Eu me masturbo. Com frequência. Ele tem uns 45 anos. Ela era uma gostosa com cabelo comprido e um corpo lindo. Eu me masturbo. Com frequência. Alguns foram feitos pra simplesmente trilhar um caminho solitário na vida. Eu geralmente não fico olhando pela janela, mas hoje reparei. Santo deus eu me masturbo desde os 13 anos. Obrigado, mamãe e irmão (meu próprio sangue). E papai, por totalmente me ignorar esses anos. Todos vocês me ajudaram profundamente a ser desse jeito. 

George tinha uma obsessão: namorar moças com menos de 20 anos. Porque não, não podia ser qualquer mulher pra tirar o sujeito da sua miséria. Tinha que ser linda e jovem. Seu livro de cabeceira era Como Namorar Moças Jovens: para homens acima de 35. Ele foi a uma palestra dada pela autor do livro (que jura que mulheres odeiam caras legais). O mundo machista lhe dizia que tudo que ele precisava para conquistar uma jovem era ter dinheiro. E ele tinha (neste vídeo ele mostra sua casa, dizendo “Isso impressionaria uma mulher”. Numa mesa, um guia de como sair com mulheres jovens). Ele não era feioE ainda assim ele era rejeitado por 30 milhões de americanas - essa era sua estimativa de quantas moças desejáveis existiam. Você já adivinhou que um monte de homem maluco e solitário fez de George seu herói, e de seu blog, um manifesto. 
Na época desse massacre na academia de ginástica, uma colunista do The Guardian vaticinou: “É preciso explicar por que o fracasso na paquera pra mulheres gera uma Bridget Jones. Pra homens, gera um George Sodini”. Um dos colunistas sexuais mais famosos dos EUA, Dan Savage, escreveu algo inacreditável: que, se George tivesse feito sexo, ele não mataria. E propôs que seria ótimo se ele tivesse sido atendido por prostitutas (Dan não se preocupou se de repente um psicopata desses pudesse ser perigoso pras prostitutas).
Na ocasião, o Sociological Images fez um ótimo post sobre como a mídia americana tratou o caso: os jornais tentaram encontrar uma razão pro ódio que George sentia pelas mulheres. Ah, é porque ele foi rejeitado. Ah, porque ele não fazia sexo. Ah, porque ele vivia sozinho. O Images lança uma provocação: vamos supor que George tivesse matado judeus, após escrever no seu blog que odeia judeus. Será que a mídia tentaria encontrar uma razão para o ódio que George sentia pelos judeus? Provavelmente não. A gente só assumiria que o cara tinha sérios problemas e era um antisemita desgraçado. Mas como o ódio é contra mulheres, e isso parece ser tão comum, tão universal, busca-se um motivo. Imagine que George tivesse matado judeus. Algum artigo começaria do jeito que começaram os artigos americanos sobre o crime na aula de aeróbica? Era nesse nível: “George Sodini não conseguia encontrar amor”. 
O massacre só foi chamado de crime de ódio pela revista feminista Ms. De novo, vamos alterar os alvos e ver como é que fica (esse exercício é necessário porque a misoginia e o machismo são tão tolerados) se as vítimas fossem negros, não mulheres. Vamos supor que Wellington, o psicopata da escola carioca, escrevesse um blog dizendo que odeia negros. Aí fosse a uma escola e desse prefência por atirar em crianças negras. Não seria considerado um crime racista, um hate crime
Há um outro caso que, por sei lá qual motivo, ninguém lembrou até agora. Em 2006, um psicopata foi a uma escola rural numa comunidade Amish da Pensilvânia, separou as meninas dos meninos, e disparou contra as meninas, atingindo onze, das quais cinco morreram. Um colunista do New York Times, que é negro, afirmou que seria um choque terrível se o mesmo assassino tivesse separado negros de brancos, e aí atirado nos negros. Mas, como se tratava de meninas, nada se disse. Em suas sábias palavras: “Estamos tão acostumados em viver numa sociedade saturada de misoginia que o tratamento bárbaro de mulheres e meninas é mais ou menos esperado”. Pelo jeito, odiar mulheres é tão normal que nem constitui um crime de ódio.
E então, por quanto tempovamos tapar o sol com a peneira e fingir que o psicopata de Realengo foi à escola para matar crianças? Parece que seus alvos eram bem outras
Fonte: Escreva Lola, escreva

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